Jesus


625. Qual é o ser mais perfeito que Deus ofereceu ao homem para servir-lhe de guia e de modelo?


A esta questão, a resposta no original francês é “Voyez Jésus” (Vêde Jesus). Nas edições em português, de Portugal e do Brasil, numas surge conforme o original, noutras simplesmente Jesus. Acontece que não é a mesma coisa, o alcance é diferente; não sei se será inocente este descuido.

Sendo a resposta simplesmente “Jesus”, ela absolutiza, não dando lugar a alternativas; sendo “Vêde Jesus”, serve como exemplo mas dá espaço a alternativas. Entende-se que a falar para a cristandade Jesus seja a referência a apresentar; afinal, a cristandade não aceita outra, se conhece qualquer outra. Todavia, não parece descabido supor que a falar para outras culturas, para outras regiões do globo, os avatares seriam outros: Krishna1, Zoroastro, Sidarta Gautama, Maomé… E pelo mesmo motivo de não aceitarem outra referência.

Quando se trata de religião todo o cuidado com as palavras é pouco. A religião na humanidade terrestre funciona ao nível do instinto (ou da instintividade, no dizer de C. G. Jung) pelo que mexe no psiquismo profundo, irracional, de onde brota o pensamento mágico; contrariar este psiquismo acarreta, ou pode acarretar, distúrbios à superfície. Basta olhar para a História. Daí a gradualidade, a muito lenta gradualidade, no entendimento de Deus e das relações com Ele; adquirir o tal sentido que ainda falta para este entendimento leva o seu tempo e no decorrer do processo para o obter pelo visto faz-se necessário o recurso a seres com nível de consciência mais elevado que acrescentem algo à espiritualidade do orbe onde encarnam. Seria correcto relativizar o avatar, mas a tendência não é essa.2

Além do mais, na lógica do progresso e da evolução contínuos, sem saltos, não se percebe a necessidade da presença de um ser dos mundos divinos num orbe acabado de sair dos mundos primitivos. Não faz sentido, pelo desperdício.

A hermenêutica aplicada ao Novo Testamento encontra demasiadas contradições, desvios e enxertos tardios que anulam bastante do que se tem como adquirido. Se à hermenêutica se juntar um olhar histórico isento de prevenção, o Jesus mítico desaparece para dar lugar a um homem exemplar, sim, mas num modelo que não interessa a conservadores e muito menos a reaccionários.3

E há algo que se esquece: é que somos, todos, Espíritos. Assim, se não está errado em rogar auxílio aos bons Espíritos (mas já está errada a idolatria), urge que deixemos de nos fazer rogados em desenvolver em nós a bondade e urge que apelemos à divindade que há em cada um de nós com intuito do crescimento psíquico e expansão da consciência.4 Estar sempre e só atido aos outros, por maiores que sejam, não melhora o indivíduo nem o mundo em que habita – e se o mundo é mau tal não acontece por fatalidade, mas porque assim se o quer e faz.

( LE 260a. - Se não houvesse indivíduos de má vida na Terra, o Espírito ficaria, portanto, privado dos meios necessários para submeter-se a certas provas?

E deveríamos lamentar isso? É precisamente o que ocorre nos mundos superiores, onde o mal não tem acesso. É por isso que neles só se encontram bons Espíritos. Façam com que o mesmo aconteça, bem rapidamente na Terra.”)



1 Devido à réplica de aspectos da vida de Krishna na vida de Jesus, Léon Denis sugere que tenham sido a mesma personalidade em épocas diferentes.

2 O próprio espiritismo, apresentado por muitos sectários que ignoram a realidade intelectual do mundo em que vivem como a verdade absoluta e definitiva, é uma tentativa de passar da religião à espiritualidade e trazer para a cultura ocidental um conhecimento já milenar do oriente.

3 Pergunto ainda: os Evangelhos são credíveis? Se são credíveis, são-no no todo ou em parte? Se só em parte, em qual parte? A que interessa à narrativa que defendemos?

Vejamos o seguinte:

«Assim, veio João, que jejua e não bebe vinho, e dizem: ‘Este tem demónio’. Então chega o Filho do homem, comendo e bebendo, e dizem: ‘Eis aí um glutão e bebedor de vinho, amigo de publicanos e pecadores!’ Todavia, a sabedoria é comprovada pelas obras que são seus frutos”. Ai dos povos incrédulos» (Mt 11, 18-19; Lc 7,34)

«Tendo Jesus entrado no pátio do templo, expulsou todos os que ali estavam comprando e vendendo; também tombou as mesas dos cambistas e as cadeiras dos comerciantes de pombas.» (Mt 21,12; Mc 11,15; Lc 19,45; Jo 2, 14-15)

É credível? Se é, por que não se humaniza Jesus? Se não é, qual o critério usado para o decidir? Por estranho que possa parecer, nenhuma das atitudes atribuídas a Jesus impossibilita qualquer outra, nem é estranha à personalidade; a única coisa que contradizem é a narrativa mística e messiânica.

4 O casal Hulnik (H. Ronald e Mary R.) da Universidade de Santa Mónica (e qualquer psicólogo cognitivo) fala-nos da dissonância cognitiva, que é a adesão em simultâneo a ideias contraditórias. E também fala na “doença do homem santo”, que é a queda na armadilha de pensar que um alegado conhecimento, por ter aprendido terminologia específica, o transforma instantaneamente num guru iluminado.


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