À Conversa com Espíritos - XVI
- Allan Kardec afirma (LM, 222) que a Doutrina Espírita não é uma invenção moderna, que o Espiritismo, por ser decorrente da própria Natureza, deve ter existido desde a origem dos tempos. Portanto, o Espiritismo é, ou deveria ser, transversal a todas as religiões e filosofias espiritualistas; mas, ao afiliar-se ao cristianismo não perdeu independência e expressão, com evidente prejuízo para a sua qualidade abrangente, sem mitos, progressista, humanista e livre-pensadora? Tanto assim que a manter-se a taxa de decrescimento actual, dentro de três a quatro décadas o espiritismo acabou.
- Além de complexa, a natureza humana ao nível que se encontra é propensa a adulterar, normalmente em defesa de interesses próprios, uns calculados, outros instintivos. Tanto cegam crenças como ambições. Aliás, foi previsto [LE 798] que antes que o Espiritismo se torne uma crença comum e marque uma nova era na História da Humanidade tenha de sustentar grandes lutas contra os interesses derivados do amor-próprio e das coisas materiais. Mas vamos a alguns factos.
Quando foi perguntado qual o tipo mais perfeito que Deus tem oferecido ao homem, para lhe servir de guia e modelo, os Espíritos responderam “Vede Jesus”. É uma referência, para os cristãos uma referência maior, mas não necessariamente a única possível. Na época e no contexto geográfico e cultural em que foi redigido O Livro dos Espíritos não teria peso ideológico dizer, p. ex., Krishna, Zoroastro ou qualquer outra figurada admirada pelos povos. Vista a resposta, qualquer extrapolação subsequente traduz apenas o entendimento de quem interpreta, não o significado explícito. Porém, quando traduções omitem o “vede” e registam apenas “Jesus”, muda o sentido à frase e torna implícito que Jesus é o referente que exclui quaisquer outros, portanto, único. O que os Espíritos ao tempo disseram – o princípio da tolerância – definitivamente não agrada aos homens. Tem mais: “ver Jesus” tem valor igual a seguir Jesus, implica acção, trabalho; só “Jesus” tem o valor de salvador, na velha tradição católica. É sintomática a adopção da adulteração. A também adopção, sistemática, do título Cristo em referência a Jesus de Nazaré é decorrência fundamental na lógica do cristianismo.
Se olharmos a colectânea de preces contidas em O Evangelho Segundo o Espiritismo constatamos que todas elas são dirigidas a Deus, bastantes secundariamente aos bons Espíritos, e algumas ao Anjo da Guarda; nenhuma utiliza nomes próprios. Mas que ouvimos numa qualquer assembleia ou reunião espírita actual? O contraste é gritante. Os atavismos religiosos regressaram em força, apenas tinham ido a banhos algures.
Ao tempo, Kardec contestou, e refutou, teses de Roustaing; sucede que, anos depois, uma estrutura política criou-se no movimento espírita e os que tomaram as rédeas do poder impuseram a obrigatoriedade de seguir as teses de Roustaing que Allan Kardec rejeitara.
O facto é que os espíritas estão divididos e, por arrasto, o Espiritismo está esfrangalhado. Mas não menos verdade é que Allan Kardec e os Espíritos da doutrina não são os culpados pelo estado lastimável a que se chegou. Allan Kardec também não é responsável pelas bizarrias mediúnicas que fizeram escola, porque deixou um manual de instruções completo, detalhado e seguro para o exercício da mediunidade. Allan Kardec não instigou a que se substituísse a fraternidade e a instrução pelo catecismo da hipocrisia e da futilidade. Já não há noção de decência para tamanha aleivosia.
Aliás, os que têm o coração no Espiritismo que decorre da própria natureza e existe desde a origem dos tempos de que mais precisam que o duplo ensinamento, primeiro e segundo, amai-vos e instruí-vos? Não se pode, no imediato, tirar a religião aos homens nem os homens da religião; se o Espiritismo tornar os homens melhores nas suas religiões algo foi ganho. Pode alegar-se que pela conotação cristã o Espiritismo não atrairá adeptos de outros credos; bem, talvez os mais obstinados sejam precisamente os crentes das confissões cristãs, talvez a espiritualidade oriental aceite bem a proposta espírita, assim a conheça.
Pode apontar-se à obra escrita algumas incongruências, mas apesar delas cumpre o objectivo maior de trazer ao ocidente europeu de forma esclarecida princípios fundamentais da vida como são a reencarnação, a comunicabilidade entre frequências vibratórias diferenciadas – “O Espiritismo é uma ciência que trata da natureza, origem e destino dos Espíritos, bem como de suas relações com o mundo corporal [AK, O que é o Espiritismo]”- e um entendimento de Deus mais adulto.
O Espiritismo é uma doutrina acabada, definitiva? Dizê-lo é dizer que a Terra atingiu o mais elevado patamar evolutivo, coisa que não é, obviamente, verdade. O Espiritismo é uma religião? Não, não é. Tal como Kardec esclareceu, não é “porque não há uma palavra para exprimir duas ideias diferentes, e que, na opinião geral, a palavra religião é inseparável da de culto; desperta exclusivamente uma ideia de forma, que o Espiritismo não tem. Mas, ainda segundo Kardec, é religião no sentido de reverência íntima para com Deus [RE, Dezembro 1868]”. O Espiritismo tem uma moral? Sim. Como filosofia, compreende todas as consequências morais que dimanam das relações que se estabelecem com os Espíritos [AK, O que é o Espiritismo]. Contém na verdade uma ética que inclui os reinos mineral, vegetal e animal, aos quais reserva o respeito devido a tudo o que vive e nos quais o princípio inteligente matura. Respeita o planeta porque sabe que mais que casa temporária funciona como uma mãe, a velha Gaia que alimenta os corpos de que os Espíritos precisam para evoluir.
As religiões são invenções humanas cujas teses e práticas estão a milénios de distância da adoração devida a Deus; não obstante, a melhor religião, a religião natural, é a que parte do coração e vai directamente a Deus. Esse entendimento associado ao da ciência espírita produzirá a renovação social, mas as ideias transformam-se com o tempo e não repentinamente.
Se o Espiritismo vai acabar? O formato entretanto adquirido não é desejável; desejável é o regresso à fonte original, a dos Espíritos que estiveram com Allan Kardec. Mas no imediato tem de cessar a divulgação que está mais interessada em atrair público com a irracionalidade espectacular do que comprometer-se com a verdade, que atrai menos público, mas regenera e educa. Os dirigentes têm de entender que o centro espírita não é um local de vaidades e têm de aceitar que não sabem tudo sobre todas as coisas, nomeadamente de espiritismo. O centro espírita é para acolher, aprender, comunicar, conviver. É para transmitir em convívio; é perguntando que se obtém respostas. É um lugar onde não cabe a brejeirice, mas inclusivo do humor. É um lugar afastado da idolatria de homens e de Espíritos. E onde o dogma não tem assento. Assim orientado, o centro espírita será referência de espiritualidade e bem-estar na sociedade civil, e por consequência o Espiritismo uma doutrina por todos respeitada.
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