Conversas espíritas à mesa do café


O título do artigo surge como reflexo daquelas conversas sobre questões que a doutrina espírita trata, mas em que expomos e defendemos as nossas opiniões sobre os assuntos com desconhecimento do que a doutrina diz a respeito deles, pelo que não é de discordância mais ou menos fundamentada que se trata, sim de obstinação.

São imensos os pontos em que tal acontece; por hoje trago aqui apenas dois, que me surgiram seguidos na leitura de O Livro dos Espíritos.

Um, é o item 186. À pergunta Há mundos em que o Espírito, deixando de viver num corpo material, tem por envoltório único somente o perispírito?” a resposta dada é “Sim, e esse envoltório torna-se tão etéreo que é como se não existisse. Esse é o estado dos Espíritos puros.”

Ora nestas conversas à mesa do café há quem afirme, e insista, que no estado de Espírito puro o perispírito já não existe, pura e simplesmente. Por experiência própria não sei como é realmente, mas o dito é que ele se torna tão etéreo que é como se não existisse. Sublinhe-se: como se. Acontece que o «como se não existisse» é substancialmente diferente e claramente em oposição ao «não existe». A primeira forma é uma imagem relativa comparativa a referir-se a algo que existe, a segunda é uma negação da existência.

Ademais, como podem os Espíritos, que não têm mais corpo, constatar a sua individualidade e distinguir-se dos demais seres espirituais que os rodeiam senão por meio do perispírito, que os distingue uns dos outros, como os corpos entre os homens? (LE 284)

É certo que podemos sempre defender as nossas opiniões, crenças, convicções, estejam elas em oposição total ou parcial com o senso comum, as verdades aceites, o conhecimento certo; todavia, a humildade deve acrescentar que apenas exprimimos o que pensamos sobre o assunto, esteja o raciocínio certo ou errado, esteja bem ou mal fundamentado. Quando falamos de algo desconhecido, uma boa argumentação pode “provar” qualquer ponto de vista.


O segundo é o item 187. À pergunta A substância do perispírito é a mesma em todos os planetas?” a resposta foi “Não; sua eterização varia conforme a natureza dos mundos. Ao passar de um a outro, o Espírito se reveste da matéria própria a cada um. A mudança, porém, se realiza com mais rapidez que um relâmpago.” Pois nessas tais conversas de café, transpostas até para palestras públicas, surge a teoria de que o perispírito de Jesus levou mil anos a ser “fabricado”. Podíamos desde logo ler nesta teoria outras duas: a do milenarismo, implícita, e a do Deus encarnado, mais explícita; porém, o que importa reter é que essa teoria contradiz desde logo a informação de que a mudança se realiza com mais rapidez que um relâmpago.

Entende-se a lógica do raciocínio: a deificação de Jesus requer algo inusitado, mas se aceita-se que o corpo carnal não tenha levado mais que nove meses a ser estruturado, não há razão aparente para que o perispírito, bem menos denso que o corpo físico, precisasse de mil anos para ser ele estruturado, contrariando até as leis da natureza.

Tanto quanto se sabe, as leis da natureza obedecem a um princípio de aplicabilidade geral e regular, só assim são leis e só assim se consegue perceber o funcionamento do mundo; se não fora assim, se a forma de funcionamento fosse variando, ficava difícil, senão impossível, o funcionamento harmónico da vida, do universo.

É claro que eu não sei se levou mil anos ou um segundo, mas, quem sabe? O bom senso, e o estudo comparado das informações veiculadas por médiuns (por mais famosos que sejam) com o contido no legado de Kardec, devia trazer cautela aos divulgadores que parece estarem mais interessados em satisfazer a irracionalidade espectacular, que atrai público, do que com a verdade, que atrai menos público, mas educa.

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