Considerações sobre o “espiritismo” brasileiro


            O “espiritismo” brasileiro, cujos pontos de contacto com o legado de Kardec são reduzidos, assenta sobretudo em Francisco Cândido Xavier (católico, apostólico, romano) e tem como ponto de partida a patranha Brasil, Coração do Mundo, Pátria do Evangelho.

        Livro cheio de erros históricos, piegas, pueril, inverosímil, parcialmente mediúnico por ditado de um improvável Humberto de Campos visando construir um mito com tanto de ingénuo quanto de perigoso por tudo aquilo que alimentou de posterior.

        (Importa lembrar Bezerra de Menezes que foi, como é público, quem lançou os alicerces da religião espírita ao instituir, na sua segunda passagem como presidente da FEB, a obrigatoriedade do estudo da obra de Roustaing1, da qual se torna destacado defensor, em conjunto com O Livro dos Espíritos. Não surpreende, por isso, que seja o santo padroeiro dos fiéis da religião espírita, vulgo “espiritismo” brasileiro.2)

        Espírito e homem quando afinizados reflectem as ideias um do outro e as comunicações espelham isso mesmo, pelo que tornam-se os médiuns mistificadores ao darem como inteiramente mediúnico o que sabem ser um misto de anímico e mediúnico. Mas, sim, a cobertura de um nome de desencarnado dá liberdade expressiva e eventualmente credibiliza, além do efeito que surte no que toca à aceitação do público. O problema é que nem sempre o Espírito é quem diz ser e outras tantas não tem a envergadura que se lhe aponta (não é, Emmanuel?).

E depois, é claro, o negócio editorial que interessa manter, grande parte para sustento do vaticano do “espiritismo” brasileiro, a autoproclamada Casa Máter do Espiritismo (FEB). E Portugal, como bom país irmão que é, também aposta no lixo e na insanidade e assina de cruz o que vem do outro lado do Atlântico.

Concomitantemente valida-se esta farsa com o desconchavo de F. C. Xavier ser a reencarnação de Allan Kardec, coisa que o próprio alimentou. (Adelino da Silveira, Kardec Prossegue). Como A. Kardec deixou claro (OP) que reencarnaria para completar a obra, um conluio de homens oportunistas fê-lo reencarnar com personalidade antitética, dando desse modo solução de continuidade ao continuum da vida, e legitimando, dessa forma, a adulteração em grande escala. No logro deste “espiritismo” os fins justificam os meios.

        Pelo que, contaminado como está, Portugal não parece ser a melhor opção para o regresso do Espiritismo à Europa, pois que as e os sequazes da Quarta Revelação3 logo se arvorariam em arautos do V Império e não se vê vantagem em sair de um mito para entrar noutro.

    E assim o “espiritismo” brasileiro, que alguns gostam de apelidar “espiritismo” prático brasileiro, quiçá devido ao assistencialismo4, tresanda a sacristias e conventos medievais, mas de chavões melífluos repetidos até à exaustão e sorriso jocoso no rosto5 propaga-se pelo mundo matando a ideia luminosa que um dia surgiu esperançosa em França.

Porque não está instalado o modo de pensar científico na generalidade das mentes, o misticismo é exemplo acabado de resiliência no movimento espírita. É assim que, quais fanatizados de seitas várias, onde, de ordinário, não são cultivadas a razão, o bom senso, a inteligência (coisas que deviam ser apanágio, fazer parte do espiritismo), pessoas academicamente bem formadas e com responsabilidades no espiritismo alinham também elas em apocalipses datados e predizem catástrofes de toda a espécie.

Em primeiro lugar, o espiritismo não está cá para andar a meter medo às pessoas mas sim para as libertar do medo; em segundo lugar, se lemos A Génese sabemos que as grandes transformações em curso são sobretudo morais. Terramotos sempre os houve. Não sei se os espíritas catastrofistas pretendem provar alguma coisa; certo é que se expõem ao ridículo, com o prejuízo acrescido de fazerem passar a ideia de que o espiritismo é apenas mais uma seita.6 Acresce que “Reconhecem-se ainda os Espíritos levianos, pela facilidade com que predizem o futuro e precisam factos materiais de que não nos é dado ter conhecimento. Os bons Espíritos fazem que as coisas futuras sejam pressentidas, quando esse pressentimento convenha; nunca, porém, determinam datas. A previsão de qualquer acontecimento para uma época determinada é indício de mistificação.” (LM 267. 8º)

  Os Espíritos e os médiuns são gente e, como gente que são, exprimem opiniões, que são vistas pessoais sobre o aquilo que se pronunciam. A universalidade é que lhes dará o carácter de verdades. É tal como a opinião de um cientista, que não faz Ciência enquanto não for aceite pela respectiva comunidade. Se esse cuidado existe entre os espíritas? Não, não existe, e a falta de rigor apressa juízos sobre produções mediúnicas, empolando-lhes o mérito naquilo que ao conhecimento interessa, e em que nem se lhes percebe a ambiguação quiçá propositada, que serve para todas as interpretações e acerta sempre, como a leitura da sina das ciganas.

Os tempos avançam e mudam as vontades, segundo o poeta, mas nem por isso deixam de existir místicos e extáticos da velha tradição religiosa, mitómanos e mitos urbanos, gente beata e adoradores de vacas, que as tornam sagradas, e eis que entre os espíritas há logo os que sabem tudo o que se passa no céu e assista às reuniões de Jesus para traçar os destinos da Terra e coisas derivadas, e se este os não proclama de enviados eles próprios tratam disso. E em tudo se acredita porque fulano dixit, e em tudo o que se critica nos outros logo se incorre. Até parece que Helena Blavatsky tem razão quando diz:

É um erro dizer que um médium tem poderes desenvolvidos. Um médium passivo não tem poder. Ele tem uma certa condição moral e física que produz emanações, ou uma aura, na qual as inteligências que o guiam podem viver e pela qual elas se manifestam. Ele é apenas o veículo através do qual elas exercem seu poder. Essa aura varia dia a dia, e, segundo as experiências do sr. Crookes, mesmo de hora em hora. É um efeito externo que resulta de causas internas. A condição moral do médium determina a espécie dos espíritos que vêm; e os espíritos que vêm influenciam reciprocamente o médium, intelectual, física e moralmente. A perfeição de sua mediunidade está na razão da sua passividade, e o perigo que ele incorre está no mesmo grau. Quando ele está completamente ‘desenvolvido’ – perfeitamente passivo -, o seu próprio espírito astral pode ser paralisado, [até] mesmo retirado de seu corpo, que é então ocupado por um elemental (…).”7

Senhoras e senhores, a proposta do Espiritismo é exercitar a inteligência, adquirir conhecimento e elevar o padrão ético-moral para que haja uma política que esvazie o assistencialismo tirando os carentes e necessitados dessa condição, ou ainda, para grande raiva dos reaccionários, implantar a liberdade, a igualdade e a fraternidade, isto sim, algo que modifica estruturalmente a sociedade para melhor. Fora disto é uma impostura, a que já sobejam impostores.


1 “Os Quatro Evangelhos” ou “Revelação da Revelação” caracterizavam-se por apresentarem graves contradições doutrinárias em relação aos princípios do Espiritismo. Allan Kardec fez algumas críticas a esses escritos, tendo consignado a refutação de algumas teses lá apresentadas em A Génese.

2 Apelidam-no de Kardec brasileiro por ter feito outro “espiritismo”, ou melhor, por ter feito do espiritismo outra coisa.

3 Para quem não saiba: delírio de fanáticos do chiquismo embasados particularmente em O Nosso Lar, livro que não está isento de suspeições, nomeadamente a de plágio de A Vida Além do Véu (Life Beyond Veil) de George Vale Owen, que havia sido lançado no Brasil em 1920 pela FEB.

4 Definição Aurélio: “doutrina, sistema ou prática (individual, grupal, estatal, social) que preconiza e/ou organiza e presta assistência a membros carentes ou necessitados de uma comunidade, nacional ou mesmo internacional, em detrimento de uma política que os tire da condição de carentes e necessitados.”

Importa-lhes perpetuar a pobreza para que, à falta de outros méritos, conquistem as boas graças divinas ajudando os pobrezinhos. Generoso e digno, porém, seria erradicar a pobreza e reduzir as desigualdades. Curiosamente, os egoístas são mais propensos à religião que os generosos. Será estratégia psicológica de compensação?

5 É o uso táctico da técnica encantatória bombardeio do amor (love bombing). É um artifício de afectividade que tenta envolver as pessoas e que faz também com que os contestatários acabem por calar-se temendo a humilhação pública e o isolamento social.

6Uma das razões por que os cientistas são tão cépticos em relação a afirmações que mostram obviamente a capacidade para além do normal da mente, é sem dúvida o facto de existir há muitos anos uma certa excentricidade de muitos indivíduos que trabalham neste meio.” (Vernon Coleman, O Poder do Corpo)

7 Comparar com OP, Manifestações dos Espíritos, item 56. (… Quando um Espírito, bom ou mau, quer atuar sobre um indivíduo, envolve-o, por assim dizer, no seu perispírito, como se fora um manto. Interpenetrando-se os fluidos, os pensamentos e as vontades dos dois se confundem e o Espírito, então, se serve do corpo do indivíduo, como se fosse seu, fazendo-o agir à sua vontade, falar, escrever, desenhar, quais os médiuns. ...)

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