Espíritos, médiuns e uma teoria da Lua


«Oitava classe. Espíritos pseudo-sábios. - Dispõem de conhecimentos bastante amplos, porém, crêem saber mais do que realmente sabem. Tendo realizado alguns progressos sob diversos pontos de vista, a linguagem deles aparenta um cunho de seriedade, de natureza a iludir com respeito às suas capacidades e luzes. Mas, em geral, isso não passa de reflexo dos preconceitos e ideias sistemáticas que nutriam na vida terrena. É uma mistura de algumas verdades com os erros mais absurdos, através dos quais penetram a presunção, o orgulho, o ciúme e a obstinação, de que ainda não puderam despir-se.» (LE, 104)


Na imensa população invisível vinculada à Terra, de alguma forma a movimentar-se no mesmo espaço que nós, a que mais e melhor é apercebida é aquela que ou tem muita saudade desta vida corpórea e está sempre ansiosa por se comunicar para sentir essa vida e mitigar a necessidade, ou está tão ociosa que o tédio a impele a distrair-se com os encarnados, que a essa distracção de bom grado se prestam pelo fascínio que o oculto provoca. Não é de admirar, por isso, a abundância de pseudo-sábios (abstraindo o ainda maior número de infelizes que apenas querem falar) a opinar através de médiuns.

Em A Génese, um dos livros da doutrina espírita, um dos capítulos, o VI, é dedicado à Uranografia geral (uranografia tem o mesmo significado que astronomia), capítulo este transcrito na íntegra da série Estudos Uranográficos, ditados por alguém que assinou Galileu e em que o médium assinou C. F.. Acerca da veracidade da identidade de Galileu apenas podemos especular, assim como não deixa de ser especulativa a identificação de C. F., embora haja boas razões para crer tratar-se de Camille Flammarion, astrónomo, pesquisador psíquico e divulgador científico francês.

Uma boa razão para crer é o facto de para falar de astronomia seja de todo conveniente ao Espírito um médium que domine intelectualmente essa ciência natural para uma correcta utilização de termos e eficaz explanação de conceitos. (Na literatura mediúnica praticamente só existe ficção e moralismo fácil. Por que será? Porque os instrumentos mediúnicos não têm conhecimentos para mais.)

O conhecimento da matéria permite ao médium ser crítico, se quiser, daquilo que o Espírito transmite, mas também permite ao Espírito dissimular a sua própria ignorância sob uma linguagem elaborada, e se o interesse das partes é acrescentar novidades, o sentido crítico é facilmente iludido. Por outro lado, a transmissão mental, telepática, do Espírito inevitavelmente é mesclada com as ideias do médium; daí que, admitindo o elevado conhecimento do Espírito comunicante, a comunicação pode sofrer enxertos e truncagens que deformam, muito ou pouco, a mensagem.

Posto isto, vejamos a alguns pontos do referido capítulo:

- 20. Sucedeu que, num ponto do universo, perdido entre as miríades de mundos, a matéria cósmica se condensou sob a forma de imensa nebulosa, animada das leis universais que regem a matéria. Em virtude dessas leis, principalmente da força molecular de atração, ela tomou a forma de um esferóide, a única que pode assumir uma massa de matéria isolada no espaço.” (Grifo meu.)

- 24. (...) Foi assim que a Terra deu nascimento à Lua, cuja massa, menos considerável, teve que sofrer um resfriamento mais rápido. Ora, as leis e as forças que presidiram ao seu desprendimento do equador terreno, e o seu movimento de translação no mesmo plano, agiram de tal sorte que esse mundo, em vez de revestir a forma esferoidal, tomou a de um globo ovóide, isto é, a forma alongada de um ovo, com o centro de gravidade fixado na parte inferior.”

Ou seja, uma anomalia astronómica que contraria a obrigatoriedade de tomar forma esferóide.

- 25. Daí, duas naturezas essencialmente distintas na superfície do mundo lunar: uma, sem qualquer analogia com o nosso, visto que os corpos fluidos e etéreos lhe são desconhecidos; a outra, leve, relativamente à Terra, uma vez que todas as substâncias menos densas se encaminharam para esse hemisfério. A primeira, perpetuamente voltada para a Terra, sem águas e sem atmosfera, a não ser aqui e ali, nos limites desse hemisfério terrestre; a outra, rica de fluidos, perpetuamente oposta ao nosso mundo.”

        Diferentemente do que acima é dito, e do que as obras de ficção retratam, a face que não está voltada para a Terra é similar ao lado que pode ser visto por todos, e não há nada de mágico ou extraordinário. Desde quando na década de 1950, 1960, os primeiros robôs fizeram imagens do outro lado, foi possível verificar que ambos os lados são muito parecidos em termos de crateras, mas sem tantos afloramentos de lava quanto no lado visto a olho nu. Até à data ainda não foram detectados fluidos.

*


Nota de Allan Kardec à teoria da Lua: “Esta teoria da Lua, inteiramente nova, explica, pela lei da gravitação, a razão pela qual esse astro apresenta sempre a mesma face para a Terra.1 Tendo o centro de gravidade num dos pontos de sua superfície, em vez de estar no centro da esfera, e sendo, em consequência, atraído para a Terra por uma força maior do que a que atrai as partes mais leves, a Lua pode ser tida como uma dessas figuras chamadas vulgarmente joão-teimoso, que se levantam constantemente sobre a sua base, ao passo que os planetas, cujo centro de gravidade está a distâncias iguais da superfície, giram regularmente sobre o próprio eixo. Os fluidos vivificantes, gasosos ou líquidos, em virtude da sua leveza específica, se encontrariam acumulados no hemisfério superior, constantemente oposto à Terra. O hemisfério inferior, o único que vemos, seria desprovido de tais fluidos e, por isso, impróprio à vida que, no entanto, reinaria no outro. Se, pois, o hemisfério superior é habitado, seus habitantes jamais viram a Terra, a menos que excursionem pelo outro, o que lhes seria impossível, já que este não dispõe das condições indispensáveis à vitalidade. Por mais racional e científica que seja essa teoria, como ainda não foi confirmada por nenhuma observação direta, não pode ser aceite senão a título de hipótese e como ideia capaz de servir de baliza à Ciência. Não se pode, porém, deixar de convir em que é a única, até o presente, que dá uma explicação satisfatória das particularidades que apresenta o globo lunar.”


As conclusões de Kardec são compreensíveis no contexto, porque como no conjunto os estudos uranográficos são condizentes com a essência da doutrina, Kardec aceitou-os e tratou de os defender, ressalvando, avisadamente, a possibilidade de erro, porque a explicação é realmente excêntrica – e porque acreditar que os Espíritos são infalíveis é tão seguro como acreditar na infalibilidade papal.


1 A Lua sincronizou o seu movimento de rotação e de translação com a Terra, ou seja: enquanto completa uma volta em torno da Terra (translação), a Lua também completa uma volta em torno de si mesma (rotação). Isso faz com que ela tenha sempre a mesma face voltada para a Terra. A quantidade da superfície que podemos ver — a fase da Lua (quando para nós está lua nova, na outra face está lua cheia) — depende de que fracção do lado visível está a receber a luz do Sol.

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