A igualdade de género na doutrina espírita: uma no cravo e outra na ferradura?


Igualdade de género significa dar igual visibilidade, poder e participação de homens e mulheres em todas as esferas da vida privada e/ou pública.

Quando lemos em O Livro dos Espíritos do item 817 em diante, tudo parece apontar no sentido de que a respeito da igualdade de género a doutrina espírita afina pelo mesmo diapasão. Se já disso convictos, quando chegamos à alínea a) do item 822 o viés cognitivo da crença, um pré-conceito, não vê o que pode ser uma grande contradição dentro da longa e elaborada resposta.

A alínea diz o seguinte:

«a) – Assim sendo, uma legislação, para ser perfeitamente justa, deve consagrar a igualdade dos direitos do homem e da mulher?

Dos direitos, sim; das funções, não. Preciso é que cada um esteja no lugar que lhe compete. Ocupe-se do exterior o homem e do interior a mulher, cada um de acordo com a sua aptidão. A lei humana, para ser equitativa, deve consagrar a igualdade dos direitos do homem e da mulher. Todo privilégio a um ou a outro concedido é contrário à justiça. A emancipação da mulher acompanha o progresso da civilização. Sua escravização marcha de par com a barbaria. Os sexos, além disso, só existem na organização física. Visto que os Espíritos podem encarnar num e noutro, sob esse aspecto nenhuma diferença há entre eles. Devem, por conseguinte, gozar dos mesmos direitos.”»

Nenhuma incoerência? Se a mulher tem igualdade de direitos, mas não tem igualdade de direitos quanto a funções, e se o lugar da mulher é no interior, isto é, dentro de casa, se o lugar da mulher é ser dona de casa, esse não é o ideal machista e misógino, em que reduzida ao papel de "doméstica" a mulher fica à mercê do homem e dos seus humores, dependente e submissa?

Apesar do muito que se diz em contrário, o espiritismo não se libertou totalmente do jugo abraâmico, porque o espiritismo é mais uma ramificação do cristianismo, portanto a toque do cajado do patriarca Abraão (cajado como símbolo de autoridade perpetuado pelo báculo bispal, e Abraão patriarca também do judaísmo e do islamismo), o tal que segundo a história se dispôs a sacrificar o filho, ou seja, a alegoria de sacrificar o futuro, com o que este pode ter de inovação e progresso.

Para ajustar à narrativa conveniente, tantas vezes se intenta desculpar o que é dito com a intenção subjacente de querer dizer coisa diferente; talvez seja, mas a intenção não altera o facto, e naquilo que fica conta o que é dito, não o que se queria dizer.

Vamos agora à Revista Espírita, 1867 » Junho » Emancipação da mulher nos Estados Unidos.

Texto de Allan Kardec:

(…) Ora, é lícito temer, e é o que ocorrerá, que na febre de emancipação que a atormenta, a mulher não se acredite apta a preencher todas a atribuições do homem e que, caindo num excesso contrário, depois de haver tido muito pouco, não pretenda ter demais. Esse resultado é inevitável, mas não devemos espantar-nos nenhum pouco. Se as mulheres têm direitos incontestáveis, a Natureza tem os seus, que não perde nunca. Em breve elas se cansarão dos papéis que não são os seus. Deixai-as, pois, reconhecer pela experiência sua insuficiência nas coisas às quais a Providência não as chamou. Tentativas infrutíferas reconduzi-las-ão forçosamente ao caminho que lhes é traçado, caminho que pode e deve ser alargado, mas que não pode ser desviado sem prejuízo para elas próprias, trazendo a possibilidade da influência toda especial que elas devem exercer. Elas reconhecerão que só terão a perder na troca, porque a mulher de atitudes muito viris jamais terá a graça e o encanto que constituem a força daquela que sabe manter a condição de mulher. Uma mulher que se faz homem abdica de sua verdadeira realeza: olham-na como um fenómeno.”


Allan Kardec para tantos um visionário, quiçá um profeta, mas quem se vê aqui é um homem do século XIX. Se lá para o século XXV apesar da diferença de papéis haverá na prática igualdade de género, porque a igualdade é mais que uma representação, ignoro-o e não o discuto; mas o tempo que vivemos é o dos séculos XX e XXI, visivelmente repletos de desigualdades, que não só de género.

Mas no mesmo artigo em pauta vem a seguinte comunicação dos Espíritos (que merece ser lida na íntegra mas aqui torna-se longa):

(…) Pobres homens! Se vos désseis conta que os Espíritos não tem sexo; que o que hoje é homem pode ser mulher amanhã; que eles escolhem indiferentemente, e por vezes de preferência, o sexo feminino, deveríeis regozijar-vos em vez de vos afligirdes com a emancipação da mulher, e admiti-la no banquete da inteligência, abrindo-lhe todas as grandes portas da ciência, porque ela tem concepções mais finas, mais suaves, contactos mais delicados que os do homem. Por que a mulher não seria médica? Ela não é chamada naturalmente a dar cuidados aos doentes, e não os daria com mais inteligência se tivesse os conhecimentos necessários? Não há casos em que, quando se trata de pessoas de seu sexo, seria preferível uma médica? Inúmeras mulheres não têm dado provas de sua aptidão para certas ciências; da finura de seu tino em certos negócios? Por que, então, os homens reservariam para si o monopólio, senão por medo de vê-las ganhar superioridade? Sem falar das profissões especiais, a primeira profissão da mulher não é a de mãe de família? Ora, a mãe instruída é mais adequada para dirigir a instrução e a educação de seus filhos. Ao mesmo tempo em que alimenta o corpo, ela pode desenvolver o coração e o espírito. Sendo a primeira infância necessariamente confiada aos cuidados da mulher, se ela for instruída, a regeneração social terá dado um passo imenso, e é isto que será feito. (...)”

Já a comunicação de que recolhemos este excerto é uma apologia inequívoca da igualdade de género, que não foi transposta na íntegra para o corpo doutrinário, talvez pelo simples motivo de vir um Espírito e dizer de uma maneira, vir outro e dizer de maneira desigual, e Kardec dizer conforme o entendimento que tem.

Em que ficamos? Ficamos como começamos: uma no cravo, outra na ferradura.













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