Espiritismo de direita, Espiritismo de esquerda


Ouve-se falar em espiritismo de direita e espiritismo de esquerda, mas essa classificação deve-se à lente ideológica que os espíritas usam e, desse modo, situam a doutrina espiritualista no seu campo. Se existe alguma convergência entre a proposta social do espiritismo e a de alguma teoria política, essa já é, ou deverá ser, outra questão.

A este respeito, um olhar atento, e isento, facilmente lhe encontra semelhança profunda com o socialismo, não marxista (materialista), sim espiritualista, na linha preconizada por Léon Denis, que em Socialismo e Espiritismo escreve: “Socialismo e Espiritismo estão unidos por laços estreitos, visto que um [Espiritismo] oferece ao outro [Socialismo] o que lhe falta a mais, isto é, o elemento de sabedoria, de justiça, de ponderação, as altas verdades e o nobre ideal sem o qual corre ele o risco de permanecer impotente ou de mergulhar na escuridão da anarquia.”, e “o socialismo poderá tornar-se uma das alavancas que levará a humanidade para destinos melhores”.

Kardec em Obras Póstumas, no capítulo “Liberdade, Igualdade e Fraternidade”, destaca: Eliminai das leis, das instituições, das religiões, da educação até os últimos vestígios dos tempos de barbárie e de privilégios, bem como todas as causas que alimentam e desenvolvem esses eternos obstáculos ao verdadeiro progresso, os quais, por assim dizer, bebemos com o leite e aspiramos por todos os poros na atmosfera social. Somente então os homens compreenderão os deveres e os benefícios da fraternidade e também se firmarão por si mesmos, sem abalos, nem perigos, os princípios complementares, os da igualdade e da liberdade. ".

Arthur Conan Doyle, em A Nova Revelação, afirmava: O homem é livre na medida em que coloca seus actos em harmonia com as leis universais. Para reinar a ordem social, o Espiritismo, o Socialismo e o Cristianismo devem dar-se as mãos; do Espiritismo pode nascer o Socialismo idealista ”.

Agora alguns itens de O Livro dos Espíritos.1

«Ao contrário da interpretação popular do espiritismo brasileiro, nas obras de Kardec, consideradas pelos seguidores como fundamentais, não há a aceitação de um fatalismo social, determinado pela ideia da reencarnação. Sobretudo em O Livro dos Espíritos, aparecem críticas à estrutura social injusta e indicações de que é preciso transformar a sociedade, junto ao apelo constante à transformação do homem. Dentro da perspectiva evolucionista, a evolução social interage dialeticamente com a evolução individual.

Entre as questões levantadas por Kardec na referida obra está a da propriedade, que era, como se sabe, objeto de discussão de socialistas e anarquistas de todos os matizes. A ideia expressa no Livro dos Espíritos vai no sentido da propriedade coletiva, com a crítica do acúmulo de capital, que se manifesta no plano moral, como egoísmo2 :

“O direito de viver confere ao homem o direito de ajuntar o que necessita para viver e repousar, quando não mais puder trabalhar? — Sim, mas deve fazê-lo em comum, como a abelha, através de um trabalho honesto, e não ajuntar como um egoísta.” (item 881)

Em seguida, Kardec indaga a partir do ponto de vista liberal que sempre defendeu a ideia de que a riqueza é uma questão de mérito (e não de injustiça) e a resposta mais uma vez é crítica:

“A desigualdade das riquezas não tem sua origem na desigualdade das faculdades, que dão a uns mais meios de adquirir do que a outros? — Sim e não. Que dizes da astúcia e do roubo?” (item 801)

Em várias outras passagens há críticas ao supérfluo de uns e à miséria de outros, à criação artificial de necessidades – em suma, o que poderíamos hoje chamar de consumismo excludente:

Há, entretanto, uma medida comum de felicidade para todos os homens? — Para a vida material, a posse do necessário; para a vida moral, a consciência pura e a fé no futuro.” (item 922)

Numa sociedade organizada segundo a lei do Cristo, ninguém deve morrer de fome.”» (item 930)


O espiritismo admite a identidade absoluta (e não sujeita ao devir) de Deus, como causa de todas as coisas, mas admite o devir permanente dos seres, da história, num processo dialético entre o individual e o coletivo. Não aceita a finalidade da história como algo pré-determinado (e nesse ponto assemelha-se ao anarquismo).

(…) As questões que opõem marxismo e espiritismo radicam-se em dois pontos (e em nenhum outro): o materialismo versus espiritualismo e a aceitação do uso da violência como necessidade histórica contra a renúncia ao uso de todo poder de força (mesmo em legítima defesa). Em ambos os pontos, o espiritismo está mais próximo dos socialistas pré-marxianos e dos anarquistas cristãos, da linha de Tolstoi.”3

Além da ligação teórica existe também uma ligação histórica entre espiritismo e socialismo, que se se tornou sólida com os seguidores de Allan Kardec, quiçá efeito imediato dos pressupostos sociais contidos na obra, começou já com este, como se pode deduzir pelos indícios seguintes (círculos maçónicos também pretendem que Kardec bebeu na maçonaria os ideais de fraternidade, liberdade e igualdade que defendeu, mas persistem as dúvidas quanto a isso):

Kardec era um educador preocupado com as questões sociais, que militava pela educação popular. Já aos 24 anos de idade, escreveu brilhante ensaio Proposta para a melhoria da Instrução Pública e durante décadas deu cursos gratuitos, em sua própria casa, de química, matemática, astronomia, fisiologia, gramática… numa tentativa de democratizar o conhecimento.

Ao que parece, manteve relações com os socialistas (depois chamados de utópicos por Marx e Engels), pois em sua fase espírita, os cita constantemente, entre eles, Fourier, e Saint-Simon.

O pesquisador francês François Gaudin descobriu recentemente documentos ainda inéditos, revelando a parceria de Kardec com o amigo Maurice Lachâtre, conhecido socialista de tendência anarquista e editor das obras de Marx, em fascículos populares. Ambos tiveram um projeto economicamente fracassado da fundação de um banco popular, possivelmente nos moldes do que queriam os socialistas pré-marxianos e os anarquistas como Proudhon.”4

Conclusão: a proposta social do espiritismo, feita de liberdade, igualdade e fraternidade, não se compadece com ditaduras, sejam de que natureza forem, nem com sistemas económicos exploradores do trabalho. Mas essa era a proposta original, francesa. Mudaram-se os tempos e as vontades e os ídolos espíritas dos tempos actuais são santarrões apoiantes de ditaduras e fascistas confessos.


1 Retirado de: Socialismo e Espiritismo, aproximações dialéticas. Dora Incontri e Alessandro Cesar Bigheto. Revista HISTEDBR On-line, Dez. 2004

2 Egoísmo é o hábito ou a atitude de uma pessoa colocar seus interesses, opiniões, desejos, necessidades em primeiro lugar, em detrimento (ou não) do ambiente e das demais pessoas com que se relaciona.

No espectro político, à direita predominam egoístas e à esquerda altruístas.

3 Op. cit.

4 Op. cit.

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