A Terceira Revelação


            Para a generalidade dos espíritas o Espiritismo é a Terceira Revelação, depois de Moisés, a primeira, e Jesus, a segunda. Até podia ser que sim, mas há um óbice: não existe a primeira. A segunda também por isso, mas não só, periclita; e, portanto, a terceira, que assenta na pressuposição das duas anteriores, torna a pretensão dos espíritas, que não são propriamente modestos, um tanto incabível.

        Mas vamos por partes. Ao que tudo indica, Moisés, como o conhecemos, é um mito, ou um conjunto de mitos reunidos num só. Estas são as indicações fortes e plausíveis da investigação histórica e da arqueologia. É claro que podemos cristalizar a nossa crença na Bíblia, esse livro de maus costumes como o definiu José Saramago, com o argumento do rabino Uri Lam, da congregação israelita Templo Beth-El: "Tampouco vejo que se trata de algo lendário, no sentido de uma espécie de não-verdade, mas sim de campos de significados religiosos, espirituais, psicológicos e simbólicos, que carregam lições de humanidade, de crescimento pessoal, de desenvolvimento de liderança que servem de inspiração até os dias atuais. Portanto, verdadeiros." É esquizofrénico, mas a realidade sobre que o mundo assenta talvez seja a esquizofrenia.

        Outro ponto forte e plausível que actua em desfavor do mito é a redacção dos Dez Mandamentos. Com efeito, o rei Josias terá escrito, ele mesmo (com a ajuda de sacerdotes e escribas), o “Livro da Lei”. Ele será então o autor dos Dez Mandamentos, afinal leis básicas para um Estado organizado e funcional, e terá criado a história na qual Moisés recebe as tábuas das mãos de Iahweh. Não são difíceis de perceber os mecanismos e possíveis motivações: política e religião sempre gostaram de se namorar (ainda gostam), e tantas vezes casaram. Neste namoro o que está em jogo, de interesse comum, é o poder. Apenas e só. Fé, Deus, espiritualidade, são sentimentos e aspirações que sem pejo os ambiciosos de poder exploram.

        A segunda revelação assenta em Jesus-Cristo, sendo que esta figura mítica e mística é uma criação do fanático Paulo, que o tempo (os teólogos) se encarregou de desenvolver e ornamentar. Vale outra vez aqui o argumento do rabino, que me apraz repetir: "Tampouco vejo que se trata de algo lendário, no sentido de uma espécie de não-verdade, mas sim de campos de significados religiosos, espirituais, psicológicos e simbólicos, que carregam lições de humanidade, de crescimento pessoal, de desenvolvimento de liderança que servem de inspiração até os dias atuais. Portanto, verdadeiros." Continua a ser esquizofrénico, mas talvez a esquizofrenia seja a realidade teleológica.

        E chegamos à terceira revelação, que para ser terceira tem de assentar nas duas anteriores e, daí, delas toma um carácter ilusório, mas, sobretudo, pelo simples facto de se apelidar “revelação” contradiz o apelo inicial da doutrina espírita à razão, ao esforço pessoal e colectivo, ao trabalho, em suma, com vista ao desenvolvimento da inteligência e adquirição de conhecimento. Inobstante o apelo, a doutrina espírita padece do viés do catolicismo, porquanto os nomes que mais assinam as comunicações estão conotados com a Igreja católica, e sabido que é da dificuldade de nos libertarmos de tendências, por mais que distorçam julgamentos, é por isso natural que mantenham o registo (e Kardec também não se terá distanciado da fé religiosa). E também (Kardec e, por consequência, a doutrina) não terá sido imune à mistificação, até porque, é facto, tantas vezes é difícil senão impossível provar a identidade do comunicante. É ainda e sempre uma questão de fé, ou de credulidade, pelo que a supressão de nomes é ainda o mais indicado. Acresce, e talvez seja intencional, que a aposição do nome condiciona a aceitação, paralisando a atenção aos conteúdos, e contrariando mesmo a instrução dada de tudo passar pelo crivo da razão como capacidade para decidir, para formar juízos, inferências e modos lógicos.

        Mas… quem não gosta de ser detentor de uma Revelação? Até os mórmons gostam. A mesma massa que faz mórmons também faz espíritas – e uma catrefada de religiões e derivações de religiões com a suas verdades reveladas mas não provadas nem adquiridas.1 Por muito que custe admitir, ainda estamos, todos, na infância espiritual, ou mais exactamente, na adolescência, que é a idade em que queremos afirmar a nossa identidade e julgamos que sabemos tudo. E quando não sabemos vem a revelação, que é a fórmula acabada para nos impormos.


1Há uma estimativa de 10 mil religiões diferentes em todo o mundo. Haverá alguma que não se considere a melhor? O sentimento inato de Deus induz à busca, mas onde levam os caminhos que partem de uma resposta firmada como dogma?

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