A sério?


Matthew Hood servia como pastor na paróquia de St Lawrence, em Utica, no Michigan. Em 2020 estava de volta da colecção de vídeos de família e descobriu uma velha gravação do seu baptismo em criança. Quando a visualizou, reparou que o diácono que realizava o baptismo usava as palavras «baptizamos-te» em vez de «baptizo-te», ao qual Hood estava habituado. Ficou alarmado e dirigiu-se aos seus superiores. Quando o assunto chegou ao Vaticano, o veredicto foi de que o desvio do guião significava que Hood nunca fora baptizado. Em consequência, a sua confirmação também não era válida, o que significava que a sua ordenação como diácono era nula e, assim, também a sua ordenação como sacerdote.

Para regressar ao seu ofício, Hood teria de ser baptizado de novo, depois confirmado, ordenado diácono e depois sacerdote, tudo isso mais uma vez. Mas isso foi o mal menor, facilmente remediável. O erro significava que, antes, ele não fora um verdadeiro sacerdote e, portanto, qualquer sacramento que tivesse administrado durante o seu ministério era também nulo. A sua igreja teve de contactar milhares de de pessoas com novidades inesperadas: aqueles que tinham sido confirmados pelo padre Hood foram informados que não eram membros completos da Igreja Católica. Aqueles que tinham sido ordenados por ele descobriram que não eram clérigos legítimos. Aqueles que que se apresentaram perante ele na confissão ficaram a saber que os seus pecados não tinham sido absolvidos. Disseram às pessoas que tinham realizado a Sagrada Comunhão que não tinham recebido a Eucaristia, como pensavam. Salvaram-se os baptizados porque não importa quem o administra, desde que use a fórmula certa, e alguns casamentos.*

* História retirada de Ritual, Dimitris Xygalatas

A sério?

Em 2020 e não em qualquer ano recuado da Idade Média? Isto é uma anedota. (Anedota: breve narração de caso verídico pouco conhecido, e que provoca o riso.)


[este espaço em branco é para dar tempo ao riso]


A ritualização é uma forma natural de tentar controlar o mundo à nossa volta. Surge a dúvida: o Vaticano acredita mesmo nisto, ou a fixação no controlo do mundo é tal que não permite o mais pequeno, e inocente, desvio ao ritual?

Os rituais são muito estruturados. Exigem rigidez (têm de ser sempre executados da forma «certa»), repetição (as mesmas acções realizadas uma e outra vez) e redundância (podem prolongar-se por muito tempo). Acreditar que acções ritualizadas surtem efeito já de si aponta para indigência intelectual, mas a suposta eficácia do ritual ser anulada por uma única palavra estar na forma plural em vez de na forma singular, e por efeito dominó aquela anulação anular rituais subsequentes repetidos milhares de vezes, não é obra de maníaco perigoso? De facto, o Vaticano, e por extensão a Igreja Católica, é assustador. No entanto, para terem o ilusório conforto dos rituais milhões adoram o monstro (que, como Hidra, é tido por entidade divina).

Desde há séculos que são lidas na missa (tantos ritos e rituais na cerimónia!) as epístolas de São Paulo, mas parece que ainda não chegaram à parte de a letra (a rigidez mental, a estolidez) matar, só o espírito (a flexibilidade mental, o bom senso) vivificar...


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