Da guerra

Os povos originais dos Grandes Lagos (da América do Norte) narravam a história da Mulher do Céu, que lhes moldava a relação com o mundo vivo, e que criou um jardim para o bem-estar de todos. Do outro lado do mundo, no Éden, estava outra mulher com um jardim e uma árvore. “Mas, porque provou o fruto, foi expulsa do jardim e os portões fecharam-se com estrondo atrás dela. Essa mãe dos homens foi obrigada a vaguear pelo deserto e a ganhar a vida à custa do suor e a não saborear os doces frutos sumarentos que fazem vergar os ramos. Para comer, foi ensinada a subjugar as regiões ermas em que foi criada.”1

Duas cosmogonias, dois modelos de civilização. O segundo, oriundo da prolífera incubadora de religiões,2 sempre lêveda do fermento da guerra, expandiu-se para ocidente até tocar no oriente, e tudo destruiu à sua passagem. Guerreiros e missionários, eles próprios incônscios escravos de reis e de papas, animados por tudo o que é vil no ser humano deram vazão imoderada às pulsões primárias sem pensar duas vezes. E assim continua. Depois de tanta desgraça e sob ameaça de destruição nuclear ainda não se quer ver, porque “a verdade nunca foi opinião da maioria; foi sempre uma conquista individual. A maioria está interessada em crucificar a verdade, mas não está preparada para a aceitar”.3 Não é uma simples crise climática que vai abrir os olhos aos filhos da cegueira.

A respeito da (lei moral de) destruição podemos tecer algumas considerações:4 (i) que o horror à destruição cresce com o desenvolvimento intelectual e moral. Ora, este horror nem é generalizado, nem tão acentuado como seria de desejar nas sociedades onde já existe. Quer dizer que o desenvolvimento intelectual e moral (aquele precede este) ainda não atingiu níveis satisfatórios; (ii) que o que impele o homem à guerra é a “Predominância da natureza animal sobre a natureza espiritual e transbordamento das paixões. No estado de barbaria, os povos um só direito conhecem - o do mais forte. Por isso é que, para tais povos, o de guerra é um estado normal.” Ora, como o estado de guerra é ainda permanente, portanto, normal, não podemos afirmar categoricamente que já saímos do estado de barbaria, além de que é por de mais evidente que o direito prevalecente é o do mais forte; (iii) que a Providência objectivou a liberdade e o progresso ao tornar necessária a guerra. Assim sendo, insurgir-se contra a guerra são gritos individuais abafados pelo tonitruar dos mísseis (já lá vai o tempo dos canhões), porque a guerra é uma necessidade do colectivo. Mas tem mais: se a Providência dispõe que seja assim, como pode algum humano opôr-se? Nem deve fazê-lo, sob pena de querer competir com Deus. Ainda: esta versão é compatível com o Deus Amor? Ou a guerra não tem nada a ver com a Providência, é antes e apenas um flagelo destruidor auto-imposto? A Transcendência imiscui-se nos nossos assuntos, ou os Espíritos é que andam por aí a imiscuir-se, seguindo as suas tendências e segundo o seu entendimento, nisso nada diferindo dos homens? E se o não-teísmo, e em particular as religiões orientais, é que estão próximas da verdade? (Pelo menos não têm andado em proselitismo pelo mundo a tudo destruir à sua passagem); (iiii) que a guerra um dia desaparecerá da face da Terra, mas só “quando os homens compreenderem a justiça e praticarem a lei de Deus. Nessa época, todos os povos serão irmãos.” Não está para breve (apesar de alguns habitantes de mundos paralelos andarem a dizer o contrário. Mas isso é lá no mundo paralelo deles, estão confusos).

1Robin Wall Kimmerer, A Sabedoria da Terra.

2As religiões abraâmicas (judaísmo, cristianismo e islamismo), e o zoroastrismo, possível antecessora daquelas.

3Osho, Terapia, Psicologia e Meditação.

4A partir de O Livro dos Espíritos.

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