A fé salva?


«Os espíritas são homens de convicção e fé. Mas, se a fé esclarecida nos atrai, nos planos espiritual e material, nobres e elevadas almas, a credulidade, no plano terrestre, atrai os charlatães, os exploradores de toda a espécie, a chusma dos cavalheiros de indústria que só nos procuram ludibriar. Aí está o perigo para o Espiritismo. Cumpre-nos, a todos os que em nosso coração zelamos a verdade e a nobreza dessa coisa, conjurá-lo. De sobra se tem repetido: o Espiritismo ou será científico, ou não subsistirá.1 Ao que acrescentaremos: o Espiritismo deve, antes de tudo, ser honesto!» (Léon Denis, No Invisível)


Fé é a adesão de forma incondicional a uma hipótese que a pessoa passa a considerar como sendo uma verdade sem qualquer tipo de prova ou critério objectivo de verificação, pela absoluta confiança que se deposita nesta ideia ou fonte de transmissão. A fé acompanha absoluta abstinência de dúvida pelo antagonismo inerente à natureza destes fenómenos psicológicos e da lógica conceitual.

É possível nutrir um sentimento de fé em relação a uma pessoa, um objecto inanimado, uma ideologia, um pensamento filosófico, um sistema qualquer, um conjunto de regras, um paradigma popular social e historicamente instituído, uma base de propostas ou dogmas de uma determinada religião. Tal sentimento não se sustenta em evidências, provas ou entendimento racional (ainda que este último critério seja amplamente discutido dentro da epistemologia e possa se refletir em sofismos ou falácias que o justifiquem de modo ilusório) e portanto, alegações baseadas em fé não são reconhecidas pela comunidade científica como parâmetro legítimo de reconhecimento ou avaliação da verdade de um postulado.” (Da Wikipédia)


            Se aceitarmos esta conceituação, ser homem de fé não é propriamente um elogio.

        Depois temos o problema filosófico de o Espiritismo ser ou não ser religião. A ler Kardec temos duas opções: o sim, mas; e o não, mas. Portanto, cada um inclina o Espiritismo para o lado que preferir, embora afastando-o sempre do método científico, já que tanto o “sim, mas” como o “não, mas” aproximam-no semanticamente da fé neste caso cristã. Posto neste enviesamento, a hierarquização2 e subsequente normalização do Espiritismo arrochou-o no colete de forças da religião, condenando-o à não subsistência. O que existe hoje é já outra coisa (que conserva o nome para bem da indústria).

É por demais evidente que não está instalado o modo de pensar científico na generalidade das mentes; por conseguinte, e por os espíritas não serem diferentes dos demais apesar de se julgarem únicos (todos os crentes lá nas suas crenças se julgam especiais), o misticismo é exemplo acabado de resiliência no movimento espírita.

Que fanatizados de seitas várias predigam apocalipses não espanta, faz parte, porque, de ordinário, nas seitas não são cultivadas a razão, o bom senso, a inteligência, coisas que, na formulação kardeciana, já são apanágio, fazem parte da doutrina espírita. É por isso um ludíbrio, um atentado à verdade e à nobreza do coisa, que pessoas academicamente bem formadas e com responsabilidades no Espiritismo alinhem também elas em apocalipses datados e predigam catástrofes de toda a espécie.3 Em primeiro lugar o Espiritismo não está cá para andar a meter medo às pessoas, mas sim para as libertar do medo; em segundo lugar, sabemos que as grandes transformações em curso são sobretudo morais. Terramotos sempre os houve. Não sei se os espíritas catastrofistas pretendem provar alguma coisa; certo é que se expõem ao ridículo, com o prejuízo acrescido de fazerem passar a ideia de que o Espiritismo é apenas mais uma seita.

A dar seguimento a esta lógica redutora temos a abundância de livros mediúnicos de perguntas e respostas sobre tudo e mais alguma coisa que importa ao conhecimento e em que se faz mais fé do que no trabalho.4 Estaria a ser optimista se dissesse que só metade da produção mediúnica contraria as boas práticas espíritas; na realidade, qualquer coisa que venha dos Espíritos é apontado como superlativo e verdade inquestionável, sobretudo se vindo de alguns nomes. Não se questiona nem médium nem Espírito como se alguém houvesse a salvo de mistificações, sobretudo porque faltam coragem e, mais que tudo, ferramentas intelectuais para o fazer.

Os Espíritos e os médiuns são gente e, como gente que são, exprimem opiniões, que são vistas pessoais sobre o aquilo que se pronunciam. A universalidade é que lhes dará o carácter de verdades. É tal como a opinião de um cientista, que não faz Ciência enquanto não for aceite pela respectiva comunidade.5


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Há uma nova variante de médiuns psicógrafos que é a dos escrevedores de cartas dos mortos.6 Escrevem-nas em aparatos de show biz porque o que importa mesmo é o espectáculo. Mas eis que surge agora no Brasil o caso do médium, ou pseudo-médium, de cartas de mortos que está a ser investigado pela polícia por acusações de fraude.7 Defende-se alegando que a verdade na psicografia é uma questão de fé [negrito meu]; mas não, a verdade na psicografia é uma questão de análise.

Além do prejuízo das pessoas fraudadas, acresce o da mediunidade, que sai aviltada, e o do Espiritismo, que sai denegrido, porque para o mundo tudo o que seja umbrático (fantástico, irreal, quimérico) e mateotecnia (ciência vã, fantástica) é espiritismo.


1 “Uma das razões por que os cientistas são tão cépticos em relação a afirmações que mostram obviamente a capacidade para além do normal da mente, é sem dúvida o facto de existir há muitos anos uma certa excentricidade de muitos indivíduos que trabalham neste meio.” (Vernon Coleman, O Poder do Corpo)

2 Dado que há associações, por imperativo legal, a dinâmica ascendente conduz naturalmente à organização piramidal.

3“Reconhecem-se ainda os Espíritos levianos, pela facilidade com que predizem o futuro e precisam factos materiais de que não nos é dado ter conhecimento. Os bons Espíritos fazem que as coisas futuras sejam pressentidas, quando esse pressentimento convenha; nunca, porém, determinam datas. A previsão de qualquer acontecimento para uma época determinada é indício de mistificação.” (LM 267. 8º)

4“Podem os Espíritos guiar os homens nas pesquisas científicas e nas descobertas?

A ciência é obra do génio; só pelo trabalho deve ser adquirida, pois só pelo trabalho é que o homem se adianta no seu caminho. Que mérito teria ele, se não lhe fosse preciso mais do que interrogar os Espíritos para saber tudo? A esse preço, qualquer imbecil poderia tornar-se sábio. O mesmo se dá com as invenções e descobertas que interessam à indústria. Há ainda uma outra consideração e é que cada coisa tem que vir a seu tempo e quando as ideias estão maduras para a receber. Se o homem dispusesse desse poder, subverteria a ordem das coisas, fazendo que os frutos brotassem antes da estação própria.” (LM 294)

5 “Quando se compreender que no Espiritismo ninguém é importante, que não há médiuns importantes, que nenhum tem ao seu dispôr e em exclusivo Espíritos sejam eles de que tipo forem, que ninguém possui um saber que chega até aos mais altos confins do universo; quando se perceber que o ser humano não tem uma consciência lúcida e objectiva do mundo que o rodeia, a começar por aquele em que habita, que vive limitado pelos sentidos enganadores e tem uma razão falível; quando se aceitar que a fantasia, o imaginário e o delírio são aquilo que melhor caracteriza o humano, então perceber-se-á que “mais vale rejeitar nove verdades do que aceitar uma mentira.” (Margarida Azevedo, O que vêm os Espíritos cá fazer - https://dissertacaoespirita.blogspot.com/ )

6 F. C. Xavier também foi célebre escrevedor de cartas de mortos. Se algumas foram aceites como prova em tribunal (imprudência que podia ter criado precedente perigoso), em outras enganou-se ou foi enganado como qualquer simples mortal.

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