Espiritualidade e Sexualidade. Achega.


Seja em virtude de dupla função da pineal1, seja por outras causas, desenha-se no ser humano uma tensão nem sempre fácil de gerir entre o instinto sexual e o apelo às realizações do espírito pela sublimação da força genésica.

Entram aqui em jogo outros factores, a saber: a situação moral do indivíduo e as sintonias que estabelece, os quais potenciam mais uma coisa ou mais outra, levando num extremo aos maiores desvarios sexuais2 e noutro extremo às maiores realizações criativas e altruístas3.

Em defesa, cito: “Uma das opções centrais do tantrismo é clara: o homem descobre que a sua energia sexual não é simplesmente uma força de reprodução, ela transborda dos quadros da simples conservação para fornecer ao indivíduo a possibilidade de atingir estados de consciência mais elevados” (Espiritualidade e Sexualidade, A.-M. Cocagnac. Artigo em O Livro dos Poderes do Espírito, coord. Louis Pauwels e Jean Feller).

Isto remete-nos para a seguinte definição da kundalini: antes de ser “acesa” é força telúrica e vital, curadora4; depois de “acesa” passa a ser uma energia inteligente.5

Por outro lado, Jung escreve (Über die Energetik der Seele. Psychologische Abhandlungen) a propósito da psicologia religiosa cristã : «A repressão dos instintos (ou mais propriamente da instintividade) conduz à formação de sucedâneos religiosos, ao chamado “amor a Deus”, no qual só um cego é incapaz de ver as características sexuais.» Com efeito, a linguagem das “esposas” de Jesus (penso que é ao que Jung se refere quando fala em “amor a Deus”) é toda ela de um erotismo mal dissimulado. Parece que ninguém consegue fugir aos encantos de Eros. Já na mitologia grega, este casou com Psiquê, que personifica a alma – e apesar da tentativa de separação não a conseguiram levar avante e ficaram unidos para todo o sempre na imortalidade.

A história de Adão e Eva e do Paraíso é, obviamente, um mito; mito que se repete, com figuras semelhantes, em várias culturas e religiões. Surge de interrogações e tentativas de explicação dos mistérios da vida a todos comuns. Joseph Campbell, em O Poder dos Mitos, dá-nos esta interpretação do “nosso” mito.

«Macho e fêmea são opostos. Outra oposição é entre o homem e Deus. O bem e o mal são um terceiro oposto. Isto é, as oposições básicas são a sexual e a que existe entre os seres humanos e Deus. Depois vem a ideia de bem e de mal no mundo. E, deste modo, pode dizer-se que Adão e Eva se fizeram expulsar do Jardim da Unidade Infinita pelo simples facto de terem identificado a dualidade. Para viver no mundo, é preciso funcionar em termos de pares opostos.»

Tem mais: na história bíblica a mulher e a serpente introduzem o pecado no mundo, e doravante os impulsos sexuais são pecaminosos, a própria vida é pecado. Numa teologia onde Deus é concebido como macho, a fêmea tinha de arcar com as culpas, só podia ser assim. Mas antes deste deus-macho, e ainda presente em diversos lados, Deus é Mãe e a serpente passa de proscrita a louvada, porque simboliza o renascimento, portanto a fertilidade e a vida.

A cosmogonia e a teleologia presente nas religiões andam ao ritmo das estações e pouco mais são que uma explicação naturalista, bem longe da transcendência requerida para Deus Inteligência suprema e Causa primeira.


1 Aceitarei a tese com maioria de defensores no espiritismo que outorgam à pineal a dupla função de reguladora da sexualidade e da mediunidade. Há quem lhe atribua outras funções, e há quem defenda a tese de que a pineal está em involução com argumentos não desprezíveis.

2 “Além das acusações do emprego de poderes sinistros, outro aspecto controverso sobre Rasputin era o fato de ele dizer ser capaz de livrar as mulheres de seus pecados “dormindo” com elas para ajudá-las a encontrar a graça divina. E ao longo de sua vida não faltaram seguidoras, assim como muitas acusações e desavenças por conta de seu comportamento devasso.”

(https://www.megacurioso.com.br/personalidades/44817-rasputin-conheca-a-historia-de-um-dos-personagens-mais-polemicos-da-russia.htm)

3 “Podemos não saber desde quando existe a crença de que a sexualidade é transmissora de poderes, mas não estaremos longe da verdade se dissermos que é tão antiga quanto a existência dos próprios videntes, líderes religiosos, os chamados directores espirituais, etc. A sexualidade utilizada para fins catárticos e exorcísticos é uma temática que está e estará sempre em aberto.” (Margarida Azevedo, O sofrimento não tem ética, https://dissertacaoespirita.blogspot.com)

4E temos o caso João de Deus, que é um exemplo extremo. Objecto de peregrinações tal a fama das curas operadas, acabou preso pelo estupro de centenas de mulheres. Sabe-se que já desde o início dos anos 80 ocorriam práticas como as de que posteriormente foi formalmente acusado; a ser assim, um lapso de F. C. Xavier, que o incensou por escrito em 1993, terá contribuído para a blindagem da estrela João de Deus (de quem só quando se tornou inconveniente é que as cúpulas do espiritismo se demarcaram) durante mais umas décadas.

5Stanislav e Christina Grof descobriram que as crises kundalini podem imitar qualquer das perturbações psiquiátricas conhecidas.

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