À Conversa com Espíritos - XIX
- Quando lemos em O Livro dos Espíritos do item 817 em diante, tudo parece apontar no sentido de que a respeito da igualdade de género, que significa dar igual visibilidade, poder e participação de homens e mulheres em todas as esferas da vida privada e/ou pública, a doutrina espírita afina pelo diapasão igualitário. Porém, quando chegamos à alínea a) do item 822 surge o que pode ser uma grande contradição, pois se a mulher tem igualdade de direitos, mas não tem igualdade de direitos quanto a funções, e se o lugar da mulher é no interior, isto é, dentro de casa, se o lugar da mulher é ser dona de casa, esse não é o ideal machista e misógino, em que reduzida ao papel de "doméstica" a mulher fica à mercê do homem e dos seus humores, dependente e submissa?
- A Revista Espírita contém os casos práticos que sustentam a teoria explanada n’O Livro dos Espíritos e n’O Livro dos Médiuns, e estudos sobre os mais diversos temas. Deve merecer outra atenção por quem quer estudar a doutrina espírita, mas, como não a tem, aconselhamos que transcrevam para aqui, para resposta à questão levantada, o final do artigo “Emancipação das Mulheres nos Estados Unidos” [1867, Junho].
«Que influência deve ter o Espiritismo sobre a condição da mulher?
Como todas as comunicações obtidas concluíssem no mesmo sentido, referir-nos-emos à seguinte, por ser a mais desenvolvida:
“Em todos os tempos os homens têm sido orgulhosos; é um vício constitucional, inerente à sua natureza. O homem – falo do sexo – o homem, forte pelo desenvolvimento de seus músculos, pelas concepções um tanto ousadas de seus pensamentos, não levou em conta a fraqueza a que se faz alusão nas santas Escrituras, fraqueza que fez a desgraça de toda a sua descendência. Julgou-se forte e serviu-se da mulher, não como de uma companheira, de uma família, mas dela se servindo do ponto de vista puramente bestial, transformando-a num animal bastante agradável e acostumando-a a manter respeitosa distância do senhor. Mas como Deus não quis que uma metade da Humanidade fosse dependente da outra, não fez duas criações distintas: uma para estar constantemente a serviço da outra. Quis que todas as suas criaturas pudessem participar do banquete da vida e do infinito na mesma proporção.
“Nesses cérebros, por tanto tempo mantidos afastados de toda ciência como impróprios a receber os benefícios da instrução, Deus fez nascer, como contrapeso, astúcias que põem em xeque as forças do homem. A mulher é fraca, o homem é forte, concebe-se; mas a mulher é astuciosa e a ciência contra a astúcia nem sempre triunfa. Se fosse a verdadeira ciência, ela a venceria; mas é uma ciência falsa e incompleta, e a mulher facilmente encontra o seu calcanhar de Aquiles. Provocada pela posição que lhe era dada, a mulher desenvolveu o germe que sentia em si; a necessidade de sair do seu aviltamento lhe deu o desejo de romper suas cadeias. Segui sua marcha; tomai-a desde a era cristã e observai-a: vê-la-eis cada vez mais dominante, mas ela não consumiu toda a sua força; conservou-a para tempos mais oportunos e aproxima-se a época em que chegará a sua vez de a exibir. Aliás, a geração que se ergue traz em seus flancos a mudança que nos é anunciada desde muito tempo, e a mulher actual quer ter, na sociedade, um lugar igual ao do homem.
“Observai bem; olhai os interiores e vede quanto a mulher tende a libertar-se do jugo; ela reina como senhora, por vezes como déspota. Vós a tivestes vergada por muito tempo; ela se empertiga como uma mola comprimida que se distende, pois começa a compreender que é chegada a sua hora.
“Pobres homens! Se reflectísseis que os Espíritos não têm sexo; que aquele que hoje é homem pode ser mulher amanhã; que escolhem indiferentemente, e por vezes de preferência, o sexo feminino, antes deveríeis regozijar-vos que vos afligir com a emancipação da mulher, e admiti-la no banquete da inteligência, abrindo-lhe de par em par todas as portas da Ciência, porque ela tem concepções mais finas, mais suaves, toques mais delicados que os do homem. Por que a mulher não poderia ser médica? Não é chamada naturalmente a prodigalizar cuidados aos doentes, e não os daria com mais inteligência se tivesse os conhecimentos necessários? Não há casos em que, quando se trata de pessoas de seu sexo, seria preferível uma médica? Muitas mulheres não têm dado provas de sua aptidão por certas ciências? Da finura de seu tato nos negócios? Por que, então, os homens reservariam para si o monopólio, senão por medo de vê-las ganhar em superioridade? Sem falar das profissões especiais, a primeira profissão da mulher não é a de mãe de família? Ora, a mãe instruída é mais apta para dirigir a instrução e a educação de seus filhos; ao mesmo tempo que alimenta o corpo, pode desenvolver o coração e o espírito. Sendo a primeira infância necessariamente confiada aos cuidados da mulher, quando esta for instruída a regeneração social terá dado um passo imenso, e é o que será feito.
“A igualdade do homem e da mulher teria ainda outro resultado. Ser senhor, ser forte, é muito bom; mas é, também, assumir grande responsabilidade. Partilhando o fardo dos negócios da família com uma companheira capaz, esclarecida, naturalmente devotada aos interesses comuns, o homem alivia a sua carga e diminui sua responsabilidade, ao passo que a mulher, estando sob tutela e, por isto mesmo, num estado de submissão forçada, não tem voto na matéria senão quando o homem houver por bem condescender em lho dar.
“Diz-se que as mulheres são muito tagarelas e muito frívolas; mas, de quem a falta, senão dos homens que não lhes permitem a reflexão? Dai-lhes o alimento do espírito, e elas falarão menos; meditarão e refletirão. Acusai-as de frivolidade? Mas o que é que elas têm a fazer? – falo sobretudo da mulher do mundo – Nada, absolutamente nada. Em que ela pode ocupar-se? Se reflecte e transcreve seus pensamentos, tratam-na ironicamente de mulher pedante. Se cultiva as ciências ou as artes, seus trabalhos não são levados em consideração, salvo raríssimas excepções e, contudo, como o homem, ela precisa de emulação. Lisonjear um artista é dar-lhe tom e coragem; mas, para a mulher, isto realmente não vale a pena! Então lhes resta o domínio da frivolidade, no qual elas podem estimular-se entre si.
“Que o homem destrua as barreiras que seu amor-próprio opõe à emancipação da mulher e logo a verá alçar o seu vôo, com grande vantagem para a sociedade. Ficai sabendo que a mulher, como todos vós, tem a centelha divina, porque a mulher é vós, como vós sois a mulher.”»
Tendo presente que nesse século ainda se discutia se a mulher tinha ou não tinha alma, compreende-se a opção ainda conservadora (e O Livro dos Espíritos antecedeu em 10 anos esta comunicação), comparando com esta dissertação tremendamente revolucionária, no que à igualdade de género concerne. Terminamos com Víctor Hugo:
“O homem é a mais elevada das criaturas;
A mulher é o mais sublime dos ideais.
O homem é o cérebro;
A mulher é o coração.
O cérebro fabrica a luz;
O coração, o amor.
A luz fecunda, o amor ressuscita.”
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